06 dezembro 2011

Poesias...talento de Ferreira Gullar

Cantiga para não morrer
Quando você for se embora, moça branca como a neve, me leve.
Se acaso você não possa me carregar pela mão, menina branca de neve, me leve no coração.
Se no coração não possa por acaso me levar,moça de sonho e de neve, me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa por tanta coisa que leve já viva em seu pensamento, menina branca de neve, me leve no esquecimento.


Traduzir-se

Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém:fundo sem fundo.
uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.
Uma parte de mim é permanente:outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem: outra parte,linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte - será arte?
... porque nada do que foi feito satisfaz a vida , nada enche a vida. A vida é viver.


"Dois e Dois são Quatro"Como dois e dois são quatro Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena
Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena
- sei que dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena mesmo que o pão seja caro e a liberdade pequena.


A Arte existe, PORQUE a vida não Basta!Não há vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás, a luz, o telefone, a sonegação do leite, da carne, do açúcar, do pão
O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos.
Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,está fechado: "não há vagas"
Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço
O poema, senhores,não fede nem cheira

No corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares
O sonho na boca, o incêndio na cama, o apelo da noite
Agora são apenas esta contração (este clarão) do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.
Madrugada
Do fundo de meu quarto, do fundo de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço crescer no osso e no músculo da noite
a noite
a noite ocidental obscenamente acesa sobre meu país dividido em classes Subversiva

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.



Nascido em São Luis do Maranhão, em 1930, Ferreira Gullar, procurou apontar em sua obra a problemática da vida política e social do homem brasileiro.
De uma forma precisa e profundamente poética traçou rumos e participou ativamente das mudanças políticas e sociais brasileiras, o que lhe levou à prisão juntamente com Paulo Francis, Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1968 e posteriormente ao exílio em 1971.
Poeta, crítico, teatrólogo e intelectual, Ferreira Gullar entra para a história da literatura como um dos maiores expoentes e influenciadores de toda uma geração de artistas dos mais diversos segmentos das artes brasileiras.

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