09 outubro 2012

Proseando

· “Sem advogado não se faz justiça” – essa frase aparece freqüentemente em adesivos colados em carros. Ela não é verdadeira.
Se um advogado acredita que ela é verdadeira, falta-lhe inteligência. Sugiro a substituição da dita frase por “O advogado, se quiser, pode ajudar a fazer justiça. Se não quiser, pode ajudar a fazer injustiça.”
O “fazer justiça” não pertence à profissão do advogado.
Ninguém vira “fazedor de justiça” por ter diploma de advogado. O Lalau que o diga.
A justiça pertence à ordem da ética – que é uma condição espiritual que o indivíduo advogado pode ou não ter. ·
O
s compositores colocam no início das partituras indicações sobre o tempo e o espírito com que devem ser tocadas: Allegro vivace, Largo, Allegretto, Lantgsam und sehnsuchtsvoll, Andante espressivo, Grave, etc.
Acho que os escritores deveriam fazer a mesma coisa com seus textos. As pessoas lêem mal porque não sabem o ritmo e o espírito do texto. Sobre isso falarei mais. ·
 
Estou me roendo de vontade de escrever umas estorinhas cômicas a partir da Bíblia. Por exemplo: Quem diria que Caim matou Abel porque Deus não era vegetariano? E a mula de Balaão que falou hebraico? E o “monte dos prepúcios”? E a praga de hemorróidas que Javé enviou sobre os soldados filisteus que haviam roubado a Arca? E o profeta careca – como eu – Eliseu, que invocou um urso que comeu um bando de meninos que estavam rindo da sua careca? E as duas filhas que embebedaram o pai para transar com ele? E a mulher que virou para trás e se transformou numa estátua de sal? No meio de coisas maravilhosas a Bíblia contém também muito humor. Claro, para quem tem senso de humor... · “O povo unido jamais será vencido”. Afinal de contas, o que é “povo”? “Povo” me parece uma palavra tão vazia quanto Deus. Todo mundo fala “povo”, todo mundo fala “Deus”. Os ditadores falam em nome do povo. Os líderes partidários falam em nome do povo. Mas, o que é o povo? Torcida de futebol? As pessoas vendo o programa do Ratinho? As multidões dançando as missas do Pe. Marcelo?: Os eleitores depositando seus votos?
 
Da minha cadeira vejo os sanhaços azuis comendo os coquinhos da areca-bambu. Ver os sanhaços me faz feliz. Lembro-me de que eles gostam de fazer buracos nos mamões maduros e entrar lá dentro para comer mais confortavelmente...

· Meu filho mais velho, o Sérgio, com a companheira, Ana Marta, fizeram a caminhada a pé até Machupichu (Não sei se é assim que se escreve). Contou dos cenários maravilhosos que iam aparecendo à medida em que subiam. Chegando a um lugar onde deveriam descansar por 40 minutos, ficaram extasiados contemplando os vales e as montanhas. Uma turista americana, entretanto, deitou debaixo de uma árvore e pôs-se a ler o livro. Não estava interessada em ver as belezas que havia no caminho. O seu objetivo era só chegar lá em cima. O livro era mais interessante. Nietzsche fala muito sobre os turistas estúpidos que se esfalfam para chegar ao alto da montanha sem perceber as belezas que existem no caminho.

· Veio-me, faz uns minutos, sem que eu quisesse, uma coisa que estava escrita na porta do laboratório de um colega meu da UNICAMP, se não me engano o Paulo Ana Bobbio: “Havendo Deus colocado limites definidos à nossa inteligência, é profundamente lamentável que ele não tivesse colocado limites também para a nossa ignorância”.

· Florais de Bach: confesso minha ignorância. Nada sei sobre os seus poderes. Mas sei muito sobre os poderes terapêuticos dos “Corais de Bach”. A música tem poderes mágicos. Nietzsche fala sobre isso no seu livro O nascimento da tragédia grega – a partir do espírito da música. A música entra no corpo e o possui. A experiência estética com a música é uma experiência de “possessão”.

· Uma amiga querida que acaba de me visitar me contou da sua experiência com a quimioterapia. O mal-estar terrível, sobre o fundo sombrio da doença. A impossibilidade de comer qualquer coisa, inclusive de beber água. Media a água que bebia com colherinhas, para não vomitar. Quando melhorou e conseguiu beber uns golinhos d’água, experimentou algo que nunca tinha sentido antes: a absurda felicidade de beber água. Vou prestar mais atenção na água, na próxima vez que for beber...

· No seu leito de morte, o velhinho de repente sentiu um desejo: “Minha filha, estou com muita vontade de comer um pastel de carne...” Ao que ela lhe respondeu: “Mas papai, pastel tem colesterol...” Um médico, dirigindo-se a uma velhinha de 90 anos, exames de laboratório perfeitos, exceto um discreto aumento na taxa de glicemia: “A senhora tem de comer menos doces...”

Rubem Alves

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